Carmélia

Carmélia

Por Raymundo Netto

“1, 2, 3 Carmélia! 1, 2, 3 Carmélia!”

A criançada, como em quase todas as tardes dominicais, se reunia no meio da praça ensombrada de árvores pacatas a enredar-se nas mais diversas brincadeiras infantis, sendo, entre todas, a mais cobiçada a de pique-esconde. Porém não o era para Carmélia, uma menininha desengonçada, magricela e deveras distraída, que mesmo portadora do verme filosófico e do hábito de guardar latas, sentia a curiosa necessidade de convivência com outros, talvez para ter a certeza de que existia de verdade ou que ainda estava viva.

Contudo, havia naquela brincadeira uma frustração intolerável: era sempre a primeira a ser encontrada! Quando isso acontecia, padecia horrores, e a partir de então, era vê-la ali, no pique, sentada inerte como um poste, assistindo à tardia chegada dos outros participantes. Alguns até conseguiam, com uma incompreensiva habilidade, chegar até o ponto e se salvar. Outros poderiam também ser encontrados pelo pegador, mas só após muito tempo, o que alargava a agonia da menina, sentindo-se diminuída, incapaz, ao contrário dos demais, eufóricos à espera daquele derradeiro redentor a gritar, para desespero do pegador: “1, 2, 3 Salve Todos!” Comum era ela voltar para casa arrasada, se jogando entre as suas latas e pensando alto, num ímpeto belchiórico de amar e mudar as coisas: “Eles verão… no domingo será diferente!”

Assim, naquela tarde, estava mudada – embora ninguém a notasse –, confiante, com ares de segredo. Não sabiam, durante a semana, Carmélia mapeara aquela praça de ponta a ponta, todos os espaços, buracos e esconderijos. Daí, como planejara, enquanto a pegadora fechava os olhos e contava, aos berros e ligeira, até 100, ela já sabia onde seria o seu perfeito escondedouro.

A menina era toda entusiasmo e animação. Ali, em completa escuridão, podia ouvir os passos e a correria seguidos da sentença: “1, 2, 3 João! João!” O menino deveria estar chorando de ódio, pensava. Era o primeiro. Não ela, mas ele. Com o tempo, ouviria um a um dos jogadores sendo denunciados pela pequena pegadora que, provavelmente, já estranhava o seu inexplicável paradeiro.

Roendo as unhas trêmulas, olhos imóveis na sua própria emoção, estampava um sorriso malino: “Não vão me encontrar, não vão!”

Passaram horas, dias, anos e ela prosseguia na brincadeira. Aquele cativeiro quase não a comportava mais, tinha fome, todavia gritava-lhe o espírito vingativo: “Acham que eu sou boba, mas não sou besta não. Eles vão ver…”

Um dia, entediada e incomodada com o silêncio, olhou com cuidado por cima de seu esconderijo e não viu ninguém. Estranhou também não encontrar a árvore escolhida como ponto do pique-esconde. Levantou-se com vagar e mesmo sem saber onde bateria o pique, pulava alto, as lágrimas cascateando nos olhos, numa alegria de circo: “1, 2, 3 Salve todos! Salve todos!… eu ganhei, eu ganhei!” E nenhum de seus coleguinhas apareceu. Ali, apenas alguns pedestres, garis e os pombos se admiravam daquela moça comprida e seminua a balançar o corpo com singular desembaraço.

E foi assim, tropeçando, às gargalhadas e com o coração retinto, que chegou em casa e encontrou a mãe, magra e envelhecida, a colocar a mesa. Vendo a filha despontar na soleira, olhou para o relógio da parede: “Até que enfim, Carmélia, a sopa já estava esfriando.”

Raymundo Netto é Jornalista, escritor, editor e produtor cultural.

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