O ano era 1970. Os Beatles tinham acabado e Paul Mccartney, sem os companheiros de banda, isola-se em sua fazenda no interior da Inglaterra para gravar aquele que seria seu primeiro álbum solo. Intitulado simplesmente McCartney, trazia o já ex-beatle tocando todos os instrumentos, produzindo e compondo sozinho. Dez anos depois e sem nenhuma banda de apoio, a história se repetiria com McCartney II. O ano agora é 2020. Forçado por causa da pandemia a interromper sua turnê europeia, o eterno baixista dos Beatles aproveitou os tempos de lockdown para entrar em estúdio. O resultado é McCartney III, anunciado para o dia 11 de dezembro e álbum onde, repetindo a velha fórmula, compõe, grava, produz, toca e, rodeado de instrumentos vintage, eleva ao máximo a temática do bloco-do-eu-sozinho. Em Letras e Livros , a primeira entrevista de Paul McCartney falando sobre o novo disco, concedida para a revista Loud and Quiet.
“Sou eu’: uma entrevista exclusiva com Paul McCartney sobre McCartney III
Por Stuart Stubbs
( tradução: Vladimir Araújo)
40 anos depois de seu último álbum solo, concluído ao estilo “ faça você mesmo”, Paul McCartney está finalmente lançando McCartney III. Em sua primeira entrevista sobre o projeto, ele nos contou sobre os temas do álbum, como o disco o ajudou a passar pelo lockdown e por que o projeto está sendo lançado agora.
Dos 17 álbuns solo de Paul McCartney, são os dois que trazem o seu nome que são mais simbólicos, não apenas pela música, mas também pela forma como foram feitos e a época em que foram lançados.
Gravado com os Beatles já separados e a portas fechadas entre o final de 1960 e início de 1970, McCartney não foi uma afirmação apenas no nome – era um registro escrito, executado, gravado e produzido por um homem que tinha sido intensamente ligado a outros três. Um verdadeiro álbum de estreia solo. Ele o gravou em segredo, em casa, e, quando chegou o momento de lançá-lo, o fez um mês antes dos Beatles lançarem seu canto do cisne, Let It Be.
Como o resto da banda, McCartney estava entrando na nova década como um novo artista, mas a ousadia de seu primeiro álbum solo seria inigualável: conscientemente sem seguir o padrão Beatle e em um estilo de produção caseiro , apresentava um instrumental despojado e uma faixa de abertura (“The Lovely Linda”) originalmente pensada apenas como uma introdução. Espontâneo, livre de pressão, o mais longe possível de Abbey Road.
1980 marcava uma nova década, outra vez sem banda e mais um álbum gravado sozinho para tentar dar sentido a tudo. A dissolução do Wings não foi lá um grande problema, mas McCartney havia permanecido no grupo pelo mesmo tempo que tinha ficado nos Beatles.
McCartney II continua sendo seu disco solo mais experimental até hoje e, possivelmente, seu melhor trabalho. Assim como seu álbum de estreia se distanciava da sonoridade de sua banda anterior, McCartney II abandonou o soft rock do Wings e optou por uma mistura de New Wave, disco, pos-punk e sons esquisitos. Você poderia facilmente confundir partes do álbum com o Talking Heads, enquanto o lado B ‘Check My Machine’ apresentava uma amostra de Tweety e Sylvester trazendo McCartney experimentando sem se preocupar com o que os fãs ou a critica iriam dizer.
Nenhum desses projetos foi bem recebido na época do lançamento, embora McCartney II tenha se tornado um disco cultuado desde então. E agora, no início de uma nova década, mais uma vez, McCartney parece ter feito bom uso do lockdown, escrevendo, executando, gravando e produzindo McCartney III – a ser lançado em 11 de dezembro.
Desta vez não há nenhuma banda se separando, mas todos os outros McCartney-ismos ainda estão lá. O disco é um esboço de ideias feito por um homem em sua casa em Sussex, com a filha Mary McCartney fazendo o papel de fotógrafa, lugar anteriormente ocupado pela mãe, Linda.
Favorecendo os instrumentos acústicos em detrimento dos eletrônicos, o novo disco tem mais em comum com seu álbum de estreia do que com sua continuação uma década depois, embora talvez o número três seja o mais eclético de todos eles, abrindo com uma longa (e praticamente instrumental) peça de violão acústico. Sem dúvida, o álbum traz algumas das melhores músicas que McCartney fez em anos e mesmo em seus momentos mais melancólicos seu otimismo prevalece. “Sou eu”, disse, quando nos falamos ontem. Lembrei de um refrão do novo disco onde McCartney canta: “Ainda é bom ser simpático”.
Oi Paul. Para começar com a pergunta mais óbvia, muitas pessoas estão se perguntando por que McCartney III agora?
Não foi intencional. Eu tive que ir ao estúdio no início do lockdown para fazer alguns trechos de música para um curta-metragem de animação. Então eu entrei, fiz o trabalho e enviei para o diretor, e então pensei, ‘Oh, isto é legal, estou gostando disto, esta é uma boa maneira de atravessar esse período “, então acabei terminando algumas músicas, juntando uns pedaços, inventando coisas e geralmente me divertindo no estúdio. E então eu voltava para casa à noite e por acaso eu estava com a família de minha filha Mary. A combinação de poder ir trabalhar, fazer alguma música e depois sair com quatro dos meus netos, foi muita sorte. Sabe, estávamos sendo super cuidadosos, mas poder fazer música realmente ajudou.
Em que momento você percebeu que o que você estava fazendo seria o McCartney III?
Logo no final, eu tinha acabado de organizar as faixas, e pensei: ‘Não sei o que vou fazer com esse material – acho que vou ficar com tudo’ e disse: ‘Espere um minuto, este é um disco de Paul McCartney’, porque eu tinha tocado tudo e feito da mesma maneira que McCartney I e II. Foi como uma pequena luz e eu pensei: ‘Bem, pelo menos isso resume o que eu tenho feito, ainda que eu não esperasse”.
Já se passaram 40 anos desde McCartney II – em algum momento entre aquela época e agora você já havia pensado em fazer o número III ?
Não. Na verdade, de modo algum. Eu fiz o McCartney logo após os Beatles em 1970, McCartney II em 1980, e fiz outros projetos similares, como The Firemen, trabalhando com o Youth – isso foi um pouco parecido porque íamos ao estúdio e Youth ou eu tinhamos apenas algumas ideias, algo caseiro, mas nunca me ocorreu de fazer outro álbum McCartney.
Como você diz, McCartney I e II marcaram importantes mudanças em sua vida e carreira – nesse sentido, como comparar o timing deste novo álbum?
O denominador comum é que eu de uma hora para outra tive muito tempo. Depois que os Beatles se separaram de repente eu também tinha muito tempo livre e nenhum plano em particular em mente. Quando o Wings acabou, foi algo semelhante. E comigo, quando tenho muito tempo, meu negócio é: ‘Bem, escreva e grave, então – isso é algo a fazer quando você tem algum tempo livre’. Portanto, foi igual, mas a pandemia impediu algumas coisas. Deveríamos ter feito uma turnê europeia este ano, mas logo o vírus chegou à Itália e gradualmente todos os outros shows, incluindo Glastonbury, que seria o ponto culminante, foram cancelados. Então foi assim : “Ok, bem, o que vou fazer? E essa era a minha alternativa – escrever e gravar.
Você é alguém que se entedia facilmente?
Eu gosto de fazer coisas, tenho que dizer. Gosto da ideia de: ‘Ooh, eu posso fazer isso’. Mas é engraçado, eu estava no Japão e fiquei doente, e eles disseram que eu teria que descansar por seis semanas, e todos os meus amigos falaram: “Você não vai suportar isso”, mas na verdade eu adorei. Acho que li cada livro, cada roteiro, vi cada programa de televisão que havia perdido – eu mesmo me surpreendi por ter gostado tanto.
As canções de Paul McCartney sempre me pareceram bem espontâneas. Você poderia escrever uma canção todos os dias, se quisesse?
Eu acho que sim. O segredo para mim é ter um pouco de tempo. Esta tarde eu realmente não estou com nada ligado e meu violão está meio que sentado aqui olhando para mim, dizendo: “Por que estou aqui?”. Mas está na hora. Acho que se eu estivesse preso e precisasse escrever uma canção todos os dias, talvez eu pudesse. Eu meio que toco todos os dias, uma coisa ou outra. Um amigo meu disse: “Violões são melhores “. Quero dizer, eles são. Eles são ótimos. Você pode formar uma boa amizade com um pedaço de madeira e metal. Eu sempre tive a sorte de ter um e quando o mundo estava contra você, você podia ir para o canto com seu violão e você podia fazer as coisas certas. É a magia da música, porque ela vem do nada. De vez em quando isso me impressiona – e eu penso: “Isto é ótimo, porque realmente aprendi acordes, e posso realmente passar por eles”. Lembro-me há muito tempo de achar muito difícil tocar entre E e A e B, e nem me fale em B7. Eu estava pensando no outro dia: “Não, eu posso me mover entre os acordes”“. Estou ficando muito bom nisto”.
Houve rumores sobre o lançamento deste novo álbum nas últimas semanas e com eles uma teoria de que McCartney III será seu último disco.
Sempre se supõe que tudo que eu faço vai ser meu último disco. Quando eu tinha 50 anos – “Essa é sua última turnê”. E foi tipo: “Ah, é mesmo? Eu acho que não”. É a onda dos boatos, mas tudo bem. Quando fizemos Abbey Road eu estava morto, então todo o resto é bônus.
Em 1970, McCartney era um álbum que apresentava temas ligados ao lar, à família e ao amor. Quais são as características deste novo disco?
Acho que é semelhante. Tem a ver com liberdade e amor. Há uma grande variedade de sentimentos nele, mas eu não me propus a que tudo fosse como: “É assim que eu me sinto neste momento”. Os velhos temas estão aí, de amor e otimismo. ‘Aproveite o dia’ – sou eu. Essa é a verdade. Uma das minhas músicas favoritas do álbum é a parte do meio de ‘Deep Deep Feeling’, que tem mais de oito minutos de duração. Se as pessoas estão esperando que seu álbum de lockdown soe como um lockdown, essa é a faixa que me parece mais claustrofóbica, apesar de ser essencialmente sobre o amor.
Essa foi uma das músicas que eu realmente tinha começado no ano passado. Com um pouco de sorte entro no estúdio e apenas invento alguma coisa, e assim eu tento fazer algo diferente. Esta faixa foi uma daquelas que eu não terminei. Para mim, foi como – não sei como acontece – quando você está sentindo amor verdadeiro por alguém, às vezes ele pode se manifestar por um formigamento sobre todo o seu corpo e é uma sensação muito engraçada e você quase não gosta – “Que diabos é isso?!” – como se você estivesse prestes a ser teletransportado para uma nave espacial ou algo assim. Nesta canção eu fiquei fascinado com essa ideia – aquele sentimento profundo, profundo quando você ama tanto alguém que quase dói. Esse foi o começo disso, mas depois que eu terminei, pensei, bem, isso não vai servir pra nada. Certamente não é um single de três minutos. O que se tornou agradável em trabalhar no estúdio foi que à noite sabia que Mary estaria cozinhando, porque ela adora cozinhar, e nós estaríamos sentados antes do jantar, e ela diria: “Bem, o que você fez hoje então?” e eu diria: “Oh, ok, eu toco para você”. E eu sempre quis que isso continuasse. Eu só queria que continuasse para sempre. É um pouco indulgente e eu estava um pouco preocupado com isso – pensei em realmente encurtar a música, mas pouco antes de fazer isso eu apenas a escutei, e pensei: “Sabe de uma coisa, eu amo isso, não vou mexer”.
O álbum vem em círculo e termina no riff da faixa de abertura, ‘Long Tailed Winter Bird’, e segue para ‘When Winter Comes’, que você gravou anos atrás com George Martin, certo?
Sim. Não há nada nessa faixa – sou só eu – mas eu tinha feito uma música chamada ‘Calico Skies’ [para o álbum Flaming Pie de 1997], que George produziu, e ao mesmo tempo, porque eu estava no estúdio e tinha esta outra música, então eu disse, “deixe-me terminar esta”. Essa foi ‘When Winter Comes’ e falo dele porque eu estava em uma sessão produzida por George Martin, mas sou só eu no violão. Ia ser quase um bônus que ia estar na reedição do Flaming Pie, mas eu tinha acabado de ler aquele grande livro sobre Elvis, Last Train to Memphis, e ele mencionou uma canção e disse que provavelmente nunca seria ouvida porque estava enterrada como bônus n
o lado B de um álbum. Então eu pensei, não, eu preferiria ter esta como uma faixa com vida própria. E terminamos o álbum com ela porque foi a razão para fazer tudo isso, porque eu e meu amigo Geoff Dunbar, que é diretor de animação, estávamos falando em fazer um filme de animação para aquela música. Então foi daí que vieram as faixas de abertura e encerramento e o que me levou para o estúdio em primeiro lugar.
McCartney II sempre foi um disco realmente interessante, que só cresceu em popularidade ao longo dos anos. Como você se sente em relação a esse álbum agora?
Isso é uma coisa ótima para mim, porque você faz esses discos com um espírito muito otimista. Você acha que está ótimo e está satisfeito com ele. E então você ouve o comentário: “Oh não, maldito inferno”. O que ele está fazendo?” Então é decepcionante quando não cai bem, e não vende bem – você só pensa que ninguém gostou. Então há alguns anos, alguém me fala: “Aqui em Brighton um DJ está tocando “Temporary Secr
etary”. Eu disse: “Você está brincando”. E ele falou: “Estão enlouquecendo por lá”. Eu pensei, bem, entendo isso – soa muito moderno com o sintetizador e outras coisas. E isso é uma coisa ótima. Quero dizer, Ram [1971] se tornou algo de que as pessoas ainda comentam. Na época, recebeu algumas críticas ruins. Então você só tem que aguentar e pensar: “Não sei, eu gostei”.
O que é ótimo em McCartney II é que as pessoas tendem a achar que sabem como é o so
m de Paul McCartney, mas ai você toca ‘Front Parlour’ ou “ Temporary secretary’ e eles nem acreditam que é você.
Eu adoro isso. É o que estou tentando fazer com esse tipo de música. Eu estava em Los Angeles gravando Egypt Station [2018] com Greg Kurstin, o produtor, e estávamos em um estúdio pequeno e Will.i.am estava lá com um de seus colegas, e ele disse: “Paul, eu estava ouvindo ‘Check My Machine'”, e o outro cara : “O quê? Eu nunca ouvi falar disso”.
Você ainda procura inovações como em ‘Check My Machine’ ou como os primeiros videoclipes para ‘Paperback Writer’ e ‘Rain’, ou quem sabe produzir o que talvez fosse o primeiro disco indie feito por Paul McCartney?
Há muitas coisas
na minha vida com as quais me surpreendo. As pessoas dizem: “Depois de tantas turnês por todos estes anos, você não passa a odiar tudo is
so? Você não está cansado?” Eu respondo: “Não, não estou”. Suponho que ainda estou procurando algo novo, mas não é tão importante assim. O mais importante para mim é entrar em um estúdio e pensar, o que podemos fazer agora. Não tem que ser algo novo, pode ser algo antigo. E neste disco, na verdade, eu tinha um par de violões que eu não tocava muito, e nós os pegamos – este velho Gibson, esta coisa linda – e eu fiquei tipo, “Como eu não toquei isto!?” e isso me levou a uma música. Mas eu ainda gosto muito do que faço, e parece meio clichê – “Sou um sortudo’ – mas é verdade. Quando eu era criança, tudo o que eu queria fazer era ligar um violão em um amplificador e sentir essa emoção, e ainda está tudo lá. Portanto, não é que eu esteja procurando algo novo, apenas procuro algo que me mantenha fora das ruas.