Neste trabalho rigoroso de pesquisa histórica, Eric Kurlander desfaz mitos sobre a ligação do nazismo a forças sobrenaturais ao mesmo tempo que encontra inúmeras evidências de como o Partido Nacional-Socialista surgiu em um meio que acreditava em teorias da conspiração delirantes e que, depois, passou a alimentar uma gama de irracionalidades.
O Terceiro Reich, desde a gênese do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães até o avanço das tropas por território europeu, sempre manteve uma relação complexa com a religião. Se, por um lado, Hitler e seus comparsas descartavam o cristianismo por não fornecer uma ligação forte com a raça e a terra, por outro, o nazismo surgiu em um meio onde fermentavam ideias ocultistas das mais populares, como astrologia e teosofia, às mais bizarras, como a cosmogonia glacial , nutridas e modificadas de diferentes formas para servir como uma base espiritual do movimento.
Alvo de muitas especulações sensacionalistas, a ligação entre o nazismo e as chamadas “ciências ocultas” já foi tema de histórias em quadrinhos e filmes populares. Os monstros de Hitler , trabalho de fôlego de Eric Kurlander, desvia dos exageros e mostra com vasta pesquisa a conexão real entre seitas com crenças abstrusas e o mais alto escalão do Partido.
Editora Zahar; 1ª edição (18 fevereiro 2025)
Idioma Português
Capa comum 552 páginas
ISBN-10 6559791785
ISBN-13 978-6559791781
Dimensões 16 x 3 x 23 cm
ARTIGO
Por Brandon Block
Os monstros de Hitler: Uma história sobrenatural do Terceiro reich, de Eric Kurlander, investiga o papel do ocultismo, do pensamento sobrenatural e da “ciência de fronteira” — práticas que reivindicavam legitimidade científica, mesmo violando padrões de verificação empírica — na Alemanha nazista. Das origens do Partido Nazista na ocultista Thule Society em 1918-19 às mitologias do “lobisomem” que impulsionaram ações partidárias nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, Kurlander integra a crescente literatura sobre a Alemanha nazista e o ocultismo, ao mesmo tempo em que incorpora novas evidências de arquivo. O resultado é um estudo exaustivamente documentado cuja tese central será difícil de refutar: a ideologia e a propaganda nazistas, os objetivos de guerra genocida do regime e a insistência da liderança em perseguir uma sangrenta Endkampf (batalha final) diante da derrota inevitável das quais dependiam de crenças sobrenaturais amplamente compartilhadas pela liderança nacional-socialista e pela população alemã.
Os monstros de Hitler se torna mais impressionante ao demonstrar padrões abrangentes em meio à natureza aparentemente caótica da ideologia e da formulação de políticas nazistas. Kurlander mostra que o fascínio pelo sobrenatural estava presente desde o início do movimento nacional-socialista e moldou as crenças nazistas sobre raça, espaço e destino nacional até o fim da guerra. A ocultista Thule Society, que patrocinou o antigo Partido dos Trabalhadores Alemães, o predecessor do Partido Nacional-Socialista de Hitler, promoveu “antissemitismo e anticomunismo raivosos, ódio fanático à democracia e dedicação à derrubada da República [de Weimar]” (46). Os primeiros apoiadores do Partido Nazista estavam imersos em mitologias de uma civilização protogermânica que teria emergido de uma raça indo-ariana, e muitos acreditavam que Hitler era dotado de capacidades sobrenaturais. Após chegar ao poder, os nazistas organizaram uma expedição ao Tibete em busca de ruínas indo-arianas, investiram em agricultura “biodinâmica” que alegava ativar forças místicas sob o solo, patrocinaram pesquisas sobre a pseudocientífica “Teoria do Gelo Mundial” e realizaram experimentos mortais em prisioneiros de campos de concentração buscando reviver os mortos ou demonstrar a inferioridade racial dos judeus. Kurlander argumenta convincentemente que nenhuma ação decisiva contra o ocultismo ocorreu. Em vez disso, a perseguição seletiva de movimentos percebidos como desafios à autoridade do regime, especialmente depois de 1937, formou as bases para aprofundar a cooperação com praticantes do ocultismo durante a guerra (106-29)
Ao apresentar uma síntese inovadora, o estudo de Kurlander também retorna a modelos interpretativos mais antigos. Enquanto estudos recentes argumentam que uma ciência marginal permitiu que os europeus se adaptassem a uma sociedade moderna e pós-cristã (xiii), Kurlander segue os teóricos neomarxistas Theodor Adorno e Ernst Bloch, que viam o ocultismo como “uma ferramenta para a manipulação fascista da população” (6) que subverteu a reflexão crítica (ver Theodor Adorno, Minima Moralia: Reflections from Damaged Life, trad. E. F. N. Jephcott, Verso, 2005, 238-44). Partindo de historiadores que se concentraram nos contextos europeu e global de colonialismo, ciência racial e crise econômica dentro dos quais a Alemanha nazista tomou forma, Kurlander enfatiza um fascínio peculiarmente austro-alemão pelo sobrenatural. Leitores educados na crítica do paradigma Sonderweg (caminho especial) da história alemã podem discordar das sugestões de Kurlander de que os “aspectos liberais e cosmopolitas do pensamento teosófico” eram “mais fortes” na Grã-Bretanha do que na Alemanha (16), ou que o longo período de fragmentação política da Alemanha alimentou um ceticismo particular em relação à ciência moderna (23-24). No entanto, Kurlander apresenta evidências convincentes da profundidade do interesse no sobrenatural tanto no Partido Nazista quanto na sociedade alemã de forma mais ampla. No início do século XX, “milhares de espiritualistas, médiuns e astrólogos” trabalharam em Berlim e Munique (14), enquanto durante a Segunda Guerra Mundial, a liderança nazista evitou a ciência “judaica” da física atômica para investir em “raios da morte” sobrenaturais e máquinas antigravitacionais (270-76).
Estudiosos da religião provavelmente estarão mais interessados ??na contribuição de Kurlander para as discussões sobre a relação entre o regime nazista, movimentos neopagãos e as igrejas protestantes e católicas da Alemanha, o foco do capítulo 6. Algumas das descobertas de Kurlander serão familiares. Por exemplo, os líderes nazistas podiam expressar uma virulenta hostilidade em relação às igrejas institucionais (especialmente católicas) enquanto ofereciam hinos à autêntica religião germânica do Jesus “ariano” (179-83). Ao mostrar como as visões religiosas nazistas se baseavam em uma mistura de motivos do pensamento völkisch, ciências marginais e religiões orientais, bem como do cristianismo, Kurlander complica utilmente o debate sobre se os nazistas eram “cristãos” ou “pagãos”. Às vezes, no entanto, Kurlander justapõe seu relato matizado do ocultismo a um retrato bastante estático do “cristianismo tradicional” (7). Seu capítulo de abertura explica a popularidade das práticas sobrenaturais na Alemanha do final do século XIX, em parte como uma reação ao declínio da crença cristã. No entanto, as igrejas alemãs do século XIX foram incubadoras de uma série de movimentos revivalistas que deram voz a ansiedades semelhantes sobre a ascensão da modernidade — pense no Grande Despertar Protestante (Erweckungsbewegung) ou no aumento das aparições marianas entre os católicos. Mesmo durante os anos nazistas, a mística católica e estigmatizada Therese Neumann von Konnersreuth, a quem Kurlander trata apenas superficialmente (292), atraiu um grande número de seguidores na Baviera rural (Michael E. O’Sullivan, “Disruptive Potential: Therese Neumann of Konnersreuth, National Socialism, and Democracy”, em Monica Black e Eric Kurlander, eds., Revisiting the “Nazi Occult”: Histories, Realities, Legacies, Camden House, 2015, 181-201). Uma maior atenção a como os cristãos (e não apenas os radicalmente pró-nazistas “cristãos alemães”) participavam do pensamento oculto, sobrenatural e racialista pode moderar a conclusão de que os crimes nazistas dependiam de uma rejeição da “moralidade cristã” (250).
Os monstros de Hitler deixa em aberto a questão de como integrar o sobrenatural ao mainstream das pesquisas sobre a Alemanha nazista, onde ele continua a desempenhar um papel secundário. Ao demonstrar a ubiquidade do pensamento sobrenatural nos níveis mais altos do regime, Kurlander reconhece que o ocultismo constitui apenas um dos múltiplos fatores necessários para explicar as atrocidades nazistas. “Os crimes do Terceiro Reich assumiram dimensões monumentais porque os nazistas se basearam tanto em teorias científicas de fronteira peculiares ao imaginário sobrenatural austro-alemão quanto em uma mistura europeia mais ampla de eugenia, racismo e colonialismo” (232). Mas como precisamente o “imaginário sobrenatural” afetou o processo de decisão que levou à Solução Final, ou a operação de locais de matança específicos? Uma tarefa para estudos futuros será complementar o foco de Kurlander no estrato de elite dos líderes nazistas — Hitler, Himmler, Goebbels, Rosenberg e Bormann tem destaques proeminentes em sua narrativa — com investigações sobre o papel do sobrenatural em comunidades religiosas específicas, localidades ou divisões militares e da SS. Tal pesquisa certamente começará com o estudo erudito e abrangente de Kurlander.
(Trad. Vladimir Araújo)