Sobre corações selvagens

SOBRE CORAÇÕES SELVAGENS
por Susy Almeida

No terceiro sábado dos dias de interdição, deitei na rede da varanda para pensar sobre este texto. Belchior cantava sobre arcos-íris e anjos rebeldes. É quarentena, mas eu tenho pressa de viver. Penso em escrever uma crônica como se deve, correta, branca, suave, muito limpa, muito leve, justamente porque a vida, ao vivo, anda muito pior do que pensamos quando elaboramos as resoluções de fim de ano há pouco mais de três meses. Minha filha não demorou a vir – sem que eu chamasse, claro, porque filhos pequenos fazem uso de toda a potência do possessivo ‘minha’ em ‘minha mãe’. Como quem ainda não se desfez da muda percepção de ser um com a mãe, ela, ao passar a perna para dentro da rede, comunica:
— Eu vou deitar aqui com você.

Mal tenho tempo para me deliciar com a segurança que traz no rosto ao entrar no espaço que toma como seu, ela já está aninhada junto a mim. Aconchego minha criança ainda mais.

— Mãe, sinto falta da minha escola, dos meus amiguinhos…

Eu quero o que a alma deseja.

— Eu sei, bebê, mas agora não dá pra ir pra escola nem ver os amigos.

As razões ela já conhece e isso justifica seu silêncio. Alguns porquês estão também de quarentena; a sagacidade, porém, jamais.

— Sua barriga ainda está boa pra ter bebê?

Quando, há um tempo, ela percebeu que em alguns dias eu usava “fraldinha”, precisei explicar o que é menstruação e, com os porquês aglomerados todos diante de mim, o que é menopausa e como se engravida.

— Sim, ainda pode sair bebê da minha barriga.

— Então, faz assim: casa com um homem, tem outro bebê e aí eu vou ter sempre com quem brincar.

Mesmo rindo das implicaturas de ‘casa com um homem’, expliquei que não quero mais casar nem ter outro bebê. A percepção de que somos seres diferentes precisa ser construída para que possa ter voz um dia. Um porquê teimoso, porém, quebrou a quarentena. Deve servir a algum setor de perguntas essenciais. Compreendo. É essencial conhecer os nãos que a vida nos lança no rosto quando o que você quer cabe numa palavra bem pequena: viver, seja viver as felicidades de uma vida de criança, seja viver a outra viagem que faz o coração selvagem ter pressa. Pensei no meu jeito de ter deixado de lado as certezas e ter arriscado tudo de novo com paixão quando me divorciei. Como comunicar isso a quem ainda se vê um com a mãe e mal entendeu as circunstâncias desse divórcio? Era minha vez, então, de explorar a potência do possessivo ‘sua’ em ‘sua mãe’. — Meu pequeno grande amor pra sempre, é que eu quero ser sua mãe, só sua, ser todinha mãe só dessa meninazinha que você é.
Algo da vaidade de que ser humano nenhum escapa atuou em meu favor. Ela me abraçou um tanto territorialista e me chamou para brincar, que é um jeito de fazer a vida pisar devagar nosso frágil coração. Quanto à crônica, minha leitora, não julgo que tenha ficado correta, branca, suave, muito limpa, muito leve. Sons, palavras são navalhas e não consigo cantar como convém.

Susy Almeida é Doutora e mestre em Linguística e professora de português e alemão em Fortaleza.

(Contatos: (@susyanne.ac )

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