A Bela e a Fera

A Bela e a Fera (2017)

Entre as poucas lembranças que tenho de infância, uma série de pequenos livrinhos infantis reapareceu na memória desde que redescobri “A Bela e a Fera” muitos anos atrás: de todos os contos que eu adorava, era este o que eu temia, e se manteve por muitos anos como a única história para crianças que eu não admirava. Ao assistir, tardiamente, o desenho da Disney de 1991, a impressão negativa deu lugar ao encantamento. E esta admiração por este clássico só aumentou ao assistir à espetacular versão com atores lançada em março de 2017.

A versão de 1991 foi a que criou o que chamo de “tríade de ouro” do renascimento da Disney: “A Bela e a Fera”, “Aladdin” (1992) e “O Rei Leão” (1994) são três clássicos lançados em sequência, os primeiros realmente clássicos e inesquecíveis depois de mais de três décadas, e já apresentavam as primeiras mas ainda tímidas interferências mais que bem-vindas da computação gráfica. Precedidos do ótimo “A Pequena Sereia” que encantou as crianças em 1989 e abriu as portas do ressuscitar de uma Disney que devia um filme espetacular desde “A Bela Adormecida” em 1959, foi justamente em “A Bela e Fera” de 1991 que tudo se tornou incrivelmente arrebatador. Esta foi a primeira animação a ganhar o Globo de Ouro de Melhor Filme e levou duas estatuetas na cerimônia do Oscar (Melhor Trilha Sonora e Melhor Canção Original), tendo concorrido a um inédito prêmio de Melhor Filme, o que causou certa polêmica na época por ser um desenho concorrendo com filmes tradicionais (a categoria de Melhor Filme de Animação só seria criada para a premiação de 2002).

Mas uma versão “de carne e osso” de uma história que foi imortalizada em desenho sempre pode ser perigosa. No recente Cinderela (2015), houve quem amasse (eu inclusive), mas houve quem torcesse o nariz. Mas será realmente inacreditável que em 2017 alguém diga que o musical dirigido com bastante cuidado por Bill Condon não seja emocionante e, ainda que com frescor de algo original, bastante fiel ao clássico da Disney. E isso é essencial: o desenho foi visto e revisto por anos e anos, seja nos cinemas, depois em DVD e agora em Bluray, além de versões de todo tipo nas sessões de teatro infantil: não seria muito interessante que a própria Disney deturpasse seu icônico clássico que hoje está presente na memória afetiva de pessoas de todas as idades.

E ei-lo na tela grande, íntegro, ainda que com alguns interessantes acréscimos. O início é puro deleite. Após a tradicional narração da cabeça da história (desta vez feminina, ao contrário do desenho) e uma cena inicial que não existia no desenho de 1991, a expectativa toda era a de saber como ficaria a clássica entrada de Bela cantando seu “Tudo é igual / Nessa minha aldeia”… E é de chorar de alegria a semelhança com o desenho e é triunfal a entrada de Emma Watson em cena. Lá está ela, com a delicadeza dos traços do desenho mas mostrando desde o primeiro momento a força de uma grande mulher em formação: sua Bela é “empoderada”, para usar a expressão da moda nesses anos 10 tão cheios de antigas lutas que ainda não foram vencidas. Ainda que tenha sido fiel ao clássico que se passa numa época tão remota, Bill Condon construiu um filme atual, mas é preciso entender que, para a realidade de sua vila, Bela já era provocadora desde sempre: Bela nunca foi uma “donzela em perigo”.

Vale lembrar que o clássico de 1991 já apresentava referências ainda que discretas a grandes filmes de Hollywood, e estas aparecem muito mais claramente diversas vezes, mas cabe ao espectador percebê-las em meio aos números musicais exuberantes. Está tudo lá: a já citada primeira sequência musical na vila, a dança frenética dos itens do jantar, os indefectíveis e engraçados seres encantados pela maldição da rosa e, claro, a dança no salão com o incrível vestido dourado. Sobre esta, há curiosidades que muitos não conhecem. Por questões de tempo e orçamento, o desenho de 1991 reutilizava o storyboard da valsa de Aurora e Felipe de “A Bela Adormecida” de 1959, e é na dança no suntuoso castelo da Fera onde são percebidas efetivamente as primeiras grandes intervenções da computação gráfica nos desenhos da Disney: o desenho do salão de 1991 é todo feito por computador.

O elenco é incrível, ainda que quase não os vejamos em cena: Dan Stevens está obviamente recoberto pela caracterização da Fera; já Ian McKellen, Emma Thompson e Ewan McGregor (excelente) são respectivamente as vozes de Horloge (Cogsworth), Madame Samovar (Mrs. Pots) e Lumière. Das atuações “visíveis”, coube então a Josh Gad (como LeFou) e especialmente Luke Evans roubarem a cena: Evans está perfeito ao tornar real o Gaston machista quase caricato do desenho. É preciso também citar o sempre incrível Kevin Kline como o pai de Bela, além de uma ponta de luxo de Stanley Tucci (como Cadenza, um personagem original criado para este filme). Talvez a Fera de Stevens não represente tão fidedignamente a do desenho, não por ser mais aterrorizante, mas por uma certa inflexibilidade das sombrias primeiras aparições, mas isso não o compromete já que na segunda metade do filme o rosto e a alma da Fera se iluminam. Já Emma Watson se sentiu livre para criar uma Bela digna, cheia de frescor mas sem fugir demais de sua “antecessora”. Viva Emma.

É preciso relevar alguns excessos, que estão evidenciados na computação gráfica necessária à construção de um castelo tão suntuoso, e talvez a solução de tentar manter Horloge, Lumière e companhia tão fiéis a objetos reais não seja tão atraente (falta a delicadeza cômica dos traços simples do desenho que atraía as crianças menores), mas as vozes que os constroem compensam uma certa falta de charme. Poderia ser um porém de “A Bela e a Fera” 2017 a inserção de mais músicas (como “Days in the Sun” e “Evermore”, assinadas por Tim Rice e Alan Menken), que esticaram a duração do longa: todas são belas, mas alguns momentos são desnecessários, como o solo da Fera no meio do filme. Mas são totalmente perdoáveis. Por falar em novidades (o filme tem pelo menos 40min a mais que o desenho), há também cenas e personagens adicionais que trazem explicações que a versão de 1991 não dava, que só enriquecem a trama.

Assisti primeiro a versão legendada, dois dias depois fui para a dublada já sabendo que o time de dubladores não seria o mesmo da versão de 1991. Os dubladores originais das canções em inglês são incríveis, e a magia das canções está toda lá. Os dubladores nacionais, como sempre (entre eles Giulia Nadruz, Fábio Azevedo, Nando Pradho, Simone Luiz, Cidalia Castro e Rodrigo Miallaret), fizeram a versão brasileira brilhar ainda mais. Mas o único porém, o grande porém que realmente causa estranheza em quem já tem o desenho “na veia”, é a alteração das letras de algumas das canções tradicionais. Por quê? Qual a necessidade de deturpar o que já foi decorado por crianças e adultos há anos e anos? Não deu nem pra cantar junto direito. Bola fora, foríssima que consagra a versão legendada em relação à dublada.

Quanto a polêmica em torno de LeFou… “parem, apenas parem”. Não é possível que alguém ache que haja algo de “pernicioso” (oi?) no personagem vivido brilhantemente por Josh Gad. A Fera protagonista da história sempre foi um monstro, literalmente, e ninguém nunca se perturbou com isso… não seria um personagem tão legal quanto LeFou — no desenho e no filme — que deveria causar qualquer auê em pleno 2017.

“Sentimentos são / fáceis de mudar”… no caso do encantamento por “A Bela e a Fera”, só mudam para melhor. Imperdível, aplaudido ao final, desde já um dos grandes filmes de 2017.

Tommy Beresford

Fonte : ( Fonte : www.cinemagia.wordpress.com )

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